O ano letivo de
2020 iniciou no dia 27 de fevereiro e em 19 de março as aulas foram suspensas, inicialmente,
pelo período de quinze dias por conta da pandemia. Essa era a informação que
chegava para a população de forma geral; ou seja, saímos imaginando que
passados 15 dias estaríamos de volta à dita “normalidade”. O fato, contudo, é
que isso não aconteceu e podemos dizer que a vida, tanto de estudantes quanto
de professores, só se modificou em direção à incerteza e, desde então, são
tantas coisas novas para a humanidade que, na tentativa de elencar, certamente
deixaríamos algo de fora.
Trazendo a
realidade do “nosso quadrado” e considerando as escolas que iniciaram o ano na
data proposta pelo governo, foram contabilizados no máximo 17 dias em sala de
aula. Porém, se considerarmos as reuniões de formação, professores em processo
de mudança de escola por conta de fechamento de turmas, turnos e até escolas,
falta de docentes em muitas disciplinas, poderemos finalmente fechar em 14 dias
de aula – tempo insuficiente para a criação de laços entre a comunidade
escolar.
Passados 5 meses da
suspensão das aulas, é provável que a sensação mais comum seja a de estarmos
vivendo o ano dos horrores na educação pública brasileira, pois a cada dia nos
deparamos com propostas das mais escabrosas que vão desde dar início ao envio
de atividades de forma digital, sem uma orientação que leve minimamente em
consideração a falta de estrutura e a autonomia das comunidades escolares; a obrigatoriedade
da realização de cursos online de forma desordenada, criação
de plataforma digital seguida de cadastro de estudantes e professores no mesmo
período, realização de formação online com geração de
atestados e/ou certificados, provocando previsível sobrecarga do site em todas
as situações. Porém, algo ainda mais macabro se aproximava quando soubemos de
escolas que se submeteram acriticamente às orientações da SEDUC e das CREs, passando
a convocar estudantes para a realização de “semana de avaliações para
posterior realização de conselho de classe...”.
Cabe ressaltar que
professores sem orientação da direção da escola e muitas vezes sem se dar conta
sobrecarregaram seus estudantes com atividades extensas e fora da realidade,
sem contar as famílias que vêm perdendo seus empregos, além de estudantes que
ajudam a cuidar de irmãos menores, a escassez de alimentos (e às vezes até de
saneamento básico), tudo isso aliado à iminente possibilidade do contágio pela
doença (acrescentando ainda o fato de alguns terem pais que contraíram a doença
e outros que chegaram a morrer). De que forma, então, podemos nos sentir
capazes de avaliar quando sequer uma única condição humana é oferecida para
estes estudantes; sem falar na ausência do contato com colegas e professores;
de equipamentos minimamente capazes de dar conta de tantos acessos, documentos,
pesquisas, etc.; e muitas vezes na ausência de internet? O que interessa é
atender estudantes, levando em consideração suas difíceis condições, ou
apressar a aplicação de projetos de governo que querem acelerar a aplicação de
uma “nova economia”?
Junte-se a isso a
informação de que inúmeros cadastros de estudantes foram feitos pelas próprias escolas
a fim de dar conta da imposição governamental, demonstrando que a realidade é
ainda mais absurda: apenas uma pequena parte consegue efetivamente acessar a
plataforma. Cabe destacar que os motivos são os mais diversos e na maior parte
das vezes não se deve unicamente à falta de força de vontade dos discentes,
como muitos colegas e o governo estão afirmando de forma alienada.
Cientes de tudo
isso, torna-se nítida a conclusão de que é impossível falarmos em reprovação no
ano letivo de 2020 – ou, então, se falarmos, o decreto sobre “calamidade
pública” não passará de uma farsa flagrante. Tal iniciativa, que partiu da
SEDUC e das CREs, demonstra apenas que o principal “recurso pedagógico”
utilizado é, ainda, o medo da reprovação, que é comprovadamente um deformador
do processo de aprendizagem – problema reconhecido da boca pra fora em inúmeros
debates pedagógicos promovidos pela própria SEDUC.
Isso não quer dizer
que não existam problemas de determinado perfil de estudante, que pode se
aproveitar da desorganização geral para não fazer nada; embora pesquisas e
diversas publicações na internet demonstrem que boa parte não sente motivação
para realizar as atividades sem a presença de professores e a convivência com
colegas da mesma faixa etária. Sem falarmos na questionável qualidade de um
ensino à distância, feito da maneira como está sendo promovido, que não atende
em nada os interesses da comunidade escolar, mas cai como uma luva aos
propósitos dos tubarões do ensino, como a Fundação Lemann e as empresas de
Luciano Huck.
As “ilustrativas”
informações do responsável pela informática e “inovação” da SEDUC
Circula um áudio pelas redes sociais do responsável pelo setor de “inovação” da
SEDUC, Silvio Zomer, que afirma ter sido incumbido pelo secretário de educação,
Faisal Karam, de “preparar o aluno da escola pública estadual para
a nova economia”. Ora, mas que “nova economia” é essa? Só pode
ser a “uberização”, sem direitos trabalhistas, previdenciários, serviços
públicos e outros tantos, baseado no teletrabalho e nas “novas tecnologias”.
Mais adiante, no mesmo áudio, com o discurso de tirar o aluno “daquela
aula do século XIX e XX”, e sem explicar exatamente como fazer isso, mas
usando sempre a velha retórica vazia que não encontra respaldo na prática,
de “colocar o aluno como protagonista de sua própria história”, ele
admite que “no mês de março a pandemia chega e muda todas as
perspectivas”, com o secretário da educação complementando que “o
plano para trazer o aluno para esta nova economia deve ser
acelerado e colocado de pé o quanto antes”. Ou seja, como já havíamos
alertado em abril e maio[1], a pandemia está sendo utilizada para
retirar direitos e aplicar os projetos neoliberais, intensificando convênios
com o google em “19 estados”.
Zomer, para tentar disfarçar, ainda afirma que “não há nenhum centavo
de dinheiro público” para as plataformas do google, mas sabemos que as
“novas tecnologias” – tal como google, facebook, whatsapp e
outros – usam a sua “gratuidade” para acessar a intimidade dos usuários, não
apenas para “mudar a opinião pública” – tal como veio à tona com o escândalo
da Cambridge Analytica, terminando com a mal explicada prisão de
Steve Bannon, e é retratada em documentários como “Privacidade hackeada” –, mas
ter informações de mercado e comportamentais privilegiadas[2]. Ou seja, o governo do Estado, tal qual
o governo federal, não apenas não investe em educação e tecnologia, como
entrega de bandeja os dados da sua própria população para empresas estrangeiras
que possuem forte suspeita e indícios de espionagem privada. Tal servilismo não
é casual.
Para acelerar “o plano de colocar o aluno nesta nova economia”, mesmo que
muitos não possuam a menor estrutura para isso, estão sendo usados os velhos
recursos pedagógicos do século XIX e XX: a coação pelo medo da reprovação.
Assim como é feito em “épocas normais” para colocar estudantes dentro de
determinados padrões comportamentais arcaicos, que remetem ao regime de
trabalho das fábricas do século XIX e XX, onde impera o autoritarismo e as
coações pelo desconto salarial ou a demissão, a “reprovação” e o cancelamento
de matrículas são o terrorismo do século XXI, usado pela SEDUC e pelo tucano
Karam, a partir das “novas tecnologias”, para aplicar a “nova economia” goela
abaixo das comunidades escolares.
Esta
é a única e exclusiva preocupação que o método da reprovação visa. Ou seja,
cria um clima de terrorismo e submissão, perfeito para ser explorado pelo
empresariado “meritocrático”; e jamais poderá criar uma educação de liberdade e
emancipação. Além disso, já escrevemos que ser contra o EaD não significa ser
contra o uso da tecnologia em sala de aula, nem contra o EaD em si; mas sim,
contra o modelo que está sendo implementado, que coloca o EaD como o centro da
educação, e não como um recurso secundário à sala de aula real. O fato,
contudo, é que a comunidade escolar, professores e mesmo a sociedade gaúcha
atendida pela escola pública não tem condições materiais para a aplicação do
EaD, que é marcado mais pelo formalismo do que por uma realidade palpável.
Forçar reprovação, portanto, significa forçar, dentro deste contexto, a
aplicação dos projetos de “uberização” na educação pública visando cortar
gastos do Estado para destiná-los ao sistema financeiro e ao empresariado
agro-exportador.
Cabe
lembrar a questão brasileira da segregação do negro em relação à vida cidadã ao
longo do século XIX e início do XX onde o acesso à educação era negado, seguido
pelo primeiro decreto relacionado ao tema (1878) que dava permissão apenas aos
negros libertos de acessarem exclusivamente cursos noturnos. Situação muito
semelhante a que ainda acontece hoje com os EJAs, após os mais diferentes tipos
de violência aos quais os jovens negros da escola pública seguem sendo submetidos,
seja ela física (pela polícia ou até mesmo no ambiente familiar e dentro da
comunidade), intelectual-afetiva, quando recebem tratamento desigual ao longo
da vida escolar; ou ainda quando a pobreza os faz abandonar os estudos a fim de
priorizar o emprego que vai lhes garantir o sustento.
Eis que vemos o triste elo de ligação daquela época com a realidade atual, onde capatazes de Eduardo Leite (PSDB e comparsas) de dentro da SEDUC almejam expurgar estudantes maiores de 50 anos dos cursos regulares de ensino médio noturno e ainda trabalham com a iminente intenção de fechamento de NEEJAs, indisponibilizando matrículas para EJAs no segundo semestre.
NOTAS
[1] Ver: http://construcaopelabase.blogspot.com/2020/06/ead-e-google-sala-de-aula-preparam.html ; http://construcaopelabase.blogspot.com/2020/06/pandemia-desculpa-que-os-governos.html ; http://construcaopelabase.blogspot.com/2020/06/fora-fundacao-lemann-da-educacao-publica.html ; http://construcaopelabase.blogspot.com/2020/04/pandemia-calamidade-publica-e-educacao.html ; e ainda: http://construcaopelabase.blogspot.com/2020/04/governo-leite-usa-pandemia-para_26.html
[2] Ver: https://cpers.com.br/educacao-vigiada-governo-entrega-dados-de-900-mil-gauchos-a-exploracao-de-multinacionais/?fbclid=IwAR3EQsQFYc_yI97br4DRiFW5m91ymCW93lMfsFCmlBgp3oWoL6TacUPfIZ4
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