20 de out. de 2019

A MILITARIZAÇÃO DA ESCOLA PÚBLICA É A SUA DESTRUIÇÃO PEDAGÓGICA

We don't need no thought control


Está em curso no Brasil a aplicação de um projeto do governo federal que visa militarizar as escolas públicas. São as “escolas cívico-militares” – uma espécie de “menina dos olhos” do governo Bolsonaro (PSL e comparsas) e dos seus apoiadores. Grande parte dos governadores estaduais abraçou a proposta com entusiasmo, uma vez que o governo federal reservou uma generosa verba de R$1 milhão por escola para custear os gastos com a contratação de militares da reserva, que são parte fundamental da proposta deste projeto.
         A medida do governo Bolsonaro sinaliza um avanço na militarização da sociedade, que é parte do seu programa político e do seu odioso culto ao regime militar de 1964. Nos primeiros nove meses do mandato de Bolsonaro, a quantidade de militares em postos do governo federal aumentou em pelo menos 325 pessoas, passando a marca de 2500 “funcionários” que detém cargos de chefia ou assessoria em cerca de 30 órgãos de governo.
Ainda que o Projeto de Lei “Escola sem Partido” (ESP) tenha sido engavetado, ele preparou o terreno para o avanço do militarismo sobre a educação pública que agora acompanhamos. Num texto de 2015, afirmamos que o objetivo do ESP era “aterrorizar, desmoralizar e desmobilizar”; e concluíamos: “Mesmo que o PL não venha a ser votado e formalmente aprovado, o seu objetivo já está sendo atingido; qual seja: intimidar e coagir as posições de esquerda dentro da escola pública e evitar que professores solicitem apoio aos alunos para uma greve ou mobilização contra o governo. Ou seja, quer se prevenir e criar uma cunha entre os professores e funcionários e a comunidade escolar, dificultando qualquer movimento grevista, que só poderá ser vitorioso na defesa da educação pública se estiver unificado”[i].
         O principal objetivo do ESP era criar uma cunha entre os educadores e a comunidade escolar, transformando os primeiros em vilões, em inimigos, em “inescrupulosos doutrinadores” que usam alunos como mera “massa de manobra” (ou seja, queriam transformar os educadores naquilo que a mídia comercial e os partidos de direita são sem nenhum remorso). Evidentemente que mesmo “engavetado”, muitos vereadores e deputados da direita neofascista tentaram e continuam tentando aprovar o PL em câmaras de vereadores, Assembleias Legislativas e até mesmo no Congresso Nacional, mas até o momento não conseguiram, dada a sua flagrante inconstitucionalidade.
         De qualquer forma, o ESP abriu a avenida ideológica (sua verdadeira intenção), pela qual segue agora o projeto das escolas “cívico-militares”. E o governo Bolsonaro não quer militarizar apenas a educação pública. No dia 1º de outubro deste ano recebeu um grupo de mineradores de Serra Pelada que pede intervenção federal no garimpo por meio de uma “administração militar”; e prontamente prometeu enviar as Forças Armadas se tiver amparo na legislação. Ou seja, pretende garantir um projeto que libera mineração em terras indígenas, legalizando garimpos nestas regiões, levando, de quebra, à naturalização do desmatamento e à exploração irrestrita da floresta amazônica.
         Assim governará Bolsonaro pelos próximos anos: militarizando todos os setores da sociedade para melhor atender aos amos imperialistas do norte. Buscando a legitimação de tais práticas, lançará, periodicamente, fake news, falsos raciocínios baseados em dicotomias e intervenções militares para repressão popular da pobreza, que encontrarão receptividade na grande mídia comercial e em muitas mentes imediatistas.

A militarização é a destruição pedagógica da escola pública: como o governo e a grande mídia jogam com o nível de consciência da comunidade escolar?[ii]
         Tal como quando foi lançado o Projeto de Lei do ESP, o Jornal do Almoço da RBS-Rede Globo não perdeu um único minuto e já saiu divulgando o novo projeto de “escolas cívico-militares” para preparar a mentalidade da opinião pública (em especial, da comunidade escolar). Ainda mais num momento em que existe possibilidade da deflagração de um movimento grevista contra a retirada de direitos.
         Numa cobertura jornalística, como sempre, totalmente tendenciosa, o jornal da RBS trouxe um professor, um aluno e um pai que eram favoráveis às “escolas cívico-militares” (sem nenhum contrário). Querem dar suporte ideológico à concretização desse projeto a partir do nível de consciência das comunidades escolares, forjando um apoio, sem contraponto, no nível médio desta opinião pública (que, como sabemos, apoiou a eleição do atual governo federal).
         Segundo o ministro da educação, Abraham Weintraub, a adesão seria voluntária, embora Bolsonaro tenha defendido a imposição de tais modelos. O sentimento que sustenta a criação das escolas cívico-militares parte da compreensão de que a educação pública é hoje desorganizada e não há qualidade no ensino e aprendizagem. A falta de qualidade seria o resultado desta “desorganização”, desconsiderando-se questões materiais, infraestruturais e salariais. É sabido que uma grande parcela de pais é favorável ao “regime militar” por compreender, erroneamente, que o problema da escola pública é unicamente de desorganização e “baderna” – portanto, de falta de controle. E é partindo dessa compreensão rasa de educação que a grande mídia e o governo têm vendido o projeto das escolas “cívico-militares”.
         A dicotomia entre desorganização versus organização é um engodo, pois sustenta que há apenas dois tipos de escola: a atual, desorganizada, com educadores grevistas, com fraco tipo de ensino; e a organizada, que é necessariamente gerida por uma disciplina militar. Não existe apenas essa divisão dicotômica e pobre. A “organização” imposta por militares não resolverá o problema. Quem assim vê a situação pensa que toda a questão da educação se resuma à “disciplina”, o que está muito longe da verdade.
         Ela necessita, antes de tudo, desenvolver todas as potencialidades humanas dos alunos; dentre as quais estão as científicas, filosóficas e artísticas. Para isso, a qualidade mais importante é o pensamento crítico, que jamais poderá surgir em um ambiente de imposições e submissões originadas da disciplina militar. Qualquer grande cientista, pensador ou artista da história só pôde surgir questionando paradigmas impostos. Caso contrário, trata-se apenas de reprodução do que já foi feito. Este tipo de “educação” já nasce condenado e jamais poderá atingir qualquer objetivo importante de desenvolvimento do país e de suas potencialidades humanas. Ao contrário: tende a gerar apenas mão de obra barata, submissa e “disciplinada” (este é o verdadeiro objetivo do governo Bolsonaro) para aceitar a carteira de trabalho “verde e amarela”.
         Pedagogicamente, uma escola cívico-militar só pode impor disciplina de cima pra baixo, assassinando o livre-pensar e o caráter dos alunos. Se, de fato, tal tipo de escola tivesse produzido algum desenvolvimento no campo educacional, então a ditadura militar (1964-1985) teria criado um novo paradigma de educação no país, o que não foi o caso. Cantar o hino nacional jamais suprirá a necessidade de aprender a pensar corretamente. Tal prática apenas gerará indivíduos ufanistas e chauvinistas, sem preocupação com o outro; aprendendo a colocar o “eu” acima do “nós”; a submissão pela submissão; a ordem pela ordem social atual (de exploração e miséria para a maioria). A educação pública necessita tanto da possibilidade do erro, da divergência e da autonomia; quanto nós necessitamos de oxigênio.
         Pelo medo de se chocar com os setores populares da comunidade e, por isso mesmo, pelo temor de se tornar impopular, o CPERS e suas correntes fazem um debate medroso e pela metade. Não responsabilizam todos os atores sociais de acordo com as suas responsabilidades. Assim, com esta atuação, deixam o caminho livre para que as ervas daninhas do neofascismo se proliferem e finquem raízes.

A chantagem da liberação das verbas: o país e o RS não viviam uma crise financeira?
         Contrariamente ao que propaga aos quatro cantos, há dinheiro para a educação... quando interessa! Neste caso, o governo Bolsonaro disponibiliza R$1 milhão por ano para cada escola que aderir “voluntariamente” ao projeto. Neste caso, o voluntarismo é uma hipocrisia, dada as condições de miserabilidade da maioria das escolas públicas.
         Pra piorar, o governo não segue os próprios critérios que prega. Conforme o governo federal e a SEDUC-RS, dois critérios seriam utilizados na definição das escolas: vulnerabilidade social e baixo desempenho no IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica). Como bem demonstrou um artigo do CPERS[iii], o governo aceitou a adesão de uma escola de Caxias do Sul que possui um índice acima da média. Neste caso, o governo possivelmente usará a escola como modelo e exemplo dos “benefícios das escolas cívico-militares”. Servirá, portanto, para maquiar resultados e não para resolver os graves problemas da escola pública.

Por um programa democrático para organizar a escola pública de acordo com os interesses dos trabalhadores e não dos patrões
         Um dos principais fatores da desorganização da escola pública não é questionado pela mídia (Jornal do Almoço), os governos (em especial o de Bolsonaro) e muitos pais e alunos que apoiam a proposta: o parcelamento salarial e a falta de infraestrutura. Com salários atrasados e defasados; bem como a falta de inúmeros professores e funcionários para completar o quadro funcional, é muito difícil colocar ordem ao caos gerado conscientemente por sucessivos governos, que possuem exatamente este “projeto de educação”. Não é o suposto “excesso de democracia” que gera a desordem e a baixa qualidade; mas justamente o contrário: a falta de democracia nas decisões vindas da SEDUC, do MEC e dos governos, somados à falta de condições materiais, como salários, materiais, funcionários, etc. Há também o problema da concepção pedagógica de muitos educadores, que entravam o processo educativo.
         Impor militares na escola não resolverá nenhum desses problemas; apenas esconderá a baixa qualidade do ensino, a falta de condições e os projetos neoliberais, através do medo do porrete militar. Sadismos, ódios e taras podem ser contentados assim; jamais a qualidade da educação. Além disso, as escolas não tem autonomia sobre a expulsão e a suspensão de alunos, o que cria uma dificuldade extra para a questão disciplinar do ambiente escolar. As escolas cívico-militares poderão suspender e expulsar alunos ou também serão estritamente controladas pela SEDUC? A cada medida punitiva grave será o aluno restituído ao ambiente escolar por ações vindas de fora, sem nem se inteirar do acontecido?
         Sabemos que existem problemas pedagógicos e administrativos por parte dos educadores que necessitam ser debatidos, mas isso deverá se dar no âmbito da comunidade escolar, com a participação real de pais e alunos nos conselhos escolares e assembleias da comunidade, além de um projeto de governo que seja progressivo (diferentemente dos atuais, que são meramente privatistas); e não com imposição militar. Se enganam aqueles que acham que a disciplina por si só é capaz de fazer “milagres”. A ordem que interessa aos trabalhadores e aos seus filhos só pode surgir de discussões democráticas, onde todos tenham possibilidade de debater e votar os encaminhamentos para cumpri-los honesta e coletivamente. A disciplina nascida da compreensão e da assimilação é muito mais eficaz e verdadeira do que a imposta pelo uniforme militar.
         Não temos dúvidas de que a escola pública tem muito para melhorar. Existem posturas profissionais que certamente necessitam ser debatidas a fundo. Mas é errado supor que existe uma saída única para o problema da baixa qualidade da educação pública: no caso, a “saída” da militarização. Isso não significa menosprezar a disciplina: mas esta precisa nascer de dentro; ser compreendida e livremente contratada. Obedecer cegamente nunca resolveu nenhum problema do Brasil, que é um país marcado por sucessivos regimes militares. Se “saídas” deste gênero resolvessem os problemas da educação pública nacional, teríamos centenas de cientistas, filósofos e pensadores; e não de jogadores de futebol e de indivíduos ávidos por abandonar o país.
         Segundo Paulo Freire, ensinar exige saber escutar e disponibilidade ao diálogo. Ou seja, tudo o que uma administração militar se recusa. Além disso, ele sustenta que o verdadeiro ensino não é uma simples transferência de conhecimento do professor para o aluno. É, portanto, uma troca. Para Freire, é necessário que “o educando vá assumindo o papel de sujeito da produção de sua inteligência do mundo e não apenas o de recebedor da que lhe seja transferida pelo professor. (...) O professor autoritário que recusa escutar os alunos, se fecha a esta aventura criadora. Nega a si mesmo a participação neste momento de boniteza singular: o da afirmação do educando como sujeito de conhecimento”. E conclui: “A autonomia vai se constituindo na experiência de várias, inúmeras decisões, que vão sendo tomadas (...) Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém”[iv]. Esta pedagogia é profundamente necessária para um país como o Brasil; e uma escola cívico militar significa o aborto desta pedagogia, uma vez que os militares são os sujeitos da autonomia de todos.
         Podemos concluir que as escolas cívico-militares propostas pelo governo Bolsonaro tem as seguintes finalidades: impor obediência (o que assassina o livre-pensar); obrigar a aceitação das condições impostas pelo mercado de trabalho; reproduzir conteúdos (não pensar a partir do novo; ausência de criação); impedir qualquer resistência vinda do chão da escola aos projetos que cortam verbas e, consequentemente, destroem a escola pública. A educação brasileira, carente em todos os sentidos, precisa de um projeto radicalmente oposto a tudo isso. É por isso que o projeto das escolas “cívico-militares” só pode interessar aos patrões e não aos trabalhadores.

Para combater a militarização neofascista das escolas, propomos:
- Que o CPERS e todos os educadores do Estado do RS debatam com as comunidades escolares o que significa pedagogicamente as escolas cívico-militares (isto é, a sua destruição). Este texto serve como um dos subsídios.
- Contrapor o que dizem os grandes pedagogos e pensadores da educação sobre a militarização das escolas públicas com o projeto de escolas cívico-militares.
- Organizar a luta de resistência nas escolas em que o projeto for imposto e a comunidade não aceitar. Denunciar as consequências nefastas do dia-a-dia que inevitavelmente virão em caso de aceitação passiva.
- Transformar a bandeira contra as escolas “cívico-militares” numa bandeira de discussão da nossa “greve” que se avizinha com a população gaúcha, demonstrando que não existe apenas “desorganização (atual)” versus “organização/militarização”.
- Debater o que é patriotismo, a sua relação com os demais países; como se deu a colonização do Brasil, o tipo de “patriotismo” da elite brasileira e por que temos que lutar pela união dos trabalhadores de todos os países, independentemente de qualquer fronteira.
- Esclarecer que educação exige livre-pensar e não cantar o hino nacional, formar filas e reproduzir a moral patriarcal da sociedade.



NOTAS


[ii] Grande parte das conclusões desse tópico surgiu numa reunião do Clube de Filosofia da Escola Estadual Alcides Cunha. Iniciativas como este clube de filosofia certamente não seriam toleradas em uma futura escola “cívico-militar”.
[iv] FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia – saberes necessários à prática educativa. Paz e Terra, São Paulo, 2010.

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