O
ano do centenário da Revolução Russa (1917-2017) está passando praticamente em
branco por parte da esquerda em geral e do CPERS em particular. Se os
trabalhadores não debatem as conclusões e o legado teórico da 1ª revolução
proletária vitoriosa da história, a mídia burguesa o faz. Rede Globo (em
especial o programa Fantástico do dia 29 de outubro de 2017) e BBC de Londres exibiram
reportagens totalmente parciais sobre este evento histórico, disseminando
inúmeros preconceitos.
A Revolução Russa de 1917 foi um
acontecimento de valor histórico-universal, tal como foi a Revolução Francesa
de 1789. As reportagens da Rede Globo e da BBC não reconhecem este valor
histórico-universal. Tentam, como sempre, associar “socialismo” ou “comunismo”
à ditadura; ou reforçam sutilmente aquele senso comum de que o socialismo “não
dá certo”, como se uma nova sociedade pudesse surgir sem contradições, avanços
e retrocessos, tal como um parto doloroso. Todas as suas conclusões querem levar
a crer que qualquer experiência comunista irá resultar inexoravelmente nos
mesmos erros. Enquanto empresas que vivem do grande capital, Rede Globo e BBC
são viscerais inimigos do “socialismo” e do “comunismo”.
Pode parecer estranho uma corrente
sindical fazer um debate político e teórico como este. Porém, os trabalhadores
conscientes, sejam de que categoria for, devem aprender com a experiência da
história do movimento operário mundial para melhor orientar a sua própria luta.
Os eventos históricos da
Revolução Russa devem ser olhados pela lente dos trabalhadores
Quando se trata do debate de
qualquer tema ligado à Revolução Russa, a grande mídia e a intelectualidade
burguesia sempre apresentam o mesmo repertório: “foi apenas terror vermelho”, “o
comunismo é ditadura”, “Lenin (e
não apenas Stalin) concentrou poderes em
suas mãos desde sempre”, “o comunismo
não permite liberdades individuais”, dentre outras pérolas.
Desde o século 19 o socialismo
recebeu os mais virulentos ataques das classes dominantes. Esta autêntica
campanha de difamação aumentou monstruosamente após a vitória da Revolução
Russa, valendo-se, inclusive, de ataques morais e religiosos. Nada de positivo
poderia ser atribuído à URSS; apenas desqualificações de baixo nível
argumentativo e repleto de preconceitos sustentados pela ignorância. Quem não
se lembra da bizarrice que dizia: “comunista come criancinha”?
Se colocarmos os óculos com a lente
dos trabalhadores, por outro lado, veremos que a Revolução Russa de 1917 fez
triunfar as instituições políticas mais progressivas que a história já
conheceu: os sovietes (palavra russa para “conselhos populares”); muito mais
democráticas que qualquer parlamento já conhecido. Segundo o famoso jornalista
norte-americano John Reed, estes sovietes funcionavam com base na democracia direta, revogando o mandato
dos eleitos uma vez que estes não atendessem a vontade dos seus eleitores.
Surgiram durante a Revolução de 1905 e se proliferaram pelo país na Revolução
de Fevereiro de 1917; mas foi somente em Outubro de 1917, quando o Partido
Bolchevique liderado por Lenin e Trotsky tomou o poder, é que se tornaram
instituições políticas reconhecidas e passaram a gerir o país. Foram um
aperfeiçoamento e um aprofundamento das instituições da Comuna de Paris (1871),
que terminou brutalmente esmagada pela burguesia francesa. Com a ascensão de
Stalin ao poder por volta de 1925, no entanto, os sovietes começaram a ser
secundarizados, abafados e, por fim, indicados de cima para baixo.
A tentativa de desmoralização de
Lenin pela mídia burguesa é permanente. Todo o seu exército de escritores e
jornalistas tenta fazer uma associação direta entre Lenin e Stalin, como se o
último fosse a continuação direta do pensamento leninista. Nada mais incorreto!
Lenin foi um grande teórico e militante incorruptível. Certamente cometeu
erros, fruto de uma realidade concreta e da sua natureza humana, mas tudo o que
escreveu ou sua postura política encontram-se a milhas de distância do pensamento
e da prática de Stalin. Este era provinciano, dogmático e, consequentemente,
autoritário. Há elementos de sua personalidade que remetem à psicopatia. O profundo
internacionalismo de Lenin está em frontal contradição com a teoria stalinista
de “socialismo em um só país”. O autoritarismo atribuído a Lenin é uma
distorção grosseira. Por certo, como principal liderança de uma revolução,
Lenin recorreu à medidas militares extremas. Autorizou ou consentiu com o
fuzilamento do czar e da sua família, além de prisioneiros militares. Resgatar
a família do czar era o objetivo dos 14 exércitos imperialistas que invadiram a
Rússia, desencadeando a guerra civil entre 1919 e 1921. Tentando derrubar o
poder bolchevique para restaurar a monarquia, estes 14 exércitos (o chamado
“exército branco”) enforcaram e assassinaram (tal como fizeram por séculos os
czares) centenas de milhares de civis. Isto é totalmente diferente do que fez
Stalin, que montou um aparato de espionagem civil e terrorismo estatal,
falsificou a história, matou oposição política dentro do próprio movimento
operário russo e internacional.
Lenin dirigiu o jovem estado soviético
respaldado pelo congresso dos sovietes de toda a Rússia, amparado pelo comissariado
do povo e durante a furiosa guerra civil de 3 anos, lançando todas as suas
esperanças na revolução proletária europeia. Apesar de estar gravemente doente,
morreu, sob circunstâncias suspeitas, em 1924. O conhecido testamento de Lenin
afirma: “O camarada Stalin, convertido em
secretário geral, concentrou em suas mãos um poder ilimitado, e não estou
seguro de que saiba utilizá-lo sempre com prudência suficiente”. Rompeu
definitivamente com Stalin em razão de um conflito pouco esclarecido entre ele
e Krupskaia (esposa de Lenin).
O culto à personalidade foi uma
invenção stalinista, de um personagem secundário durante os eventos
revolucionários de 1917 que precisou cultuar Lenin como um deus para poder
consolidar o seu próprio poder. Lenin nunca compactuou com tal prática. No
poema escrito em 1924 como tributo a sua morte, o poeta russo Maiakóvski
afirma: “Será possível que de Lenin
também se fale como um ‘chefe pela graça de Deus’?”; e mais adiante: “Receio que as procissões, os mausoléus, a
admiração, seus estatutos e regras, possam afogar numa doce unção a
simplicidade de Lenin”. Como se pode ver, nada mais longe da verdade do que
insinuou a reportagem tendenciosa do Fantástico,
da Rede Globo. É bastante compreensível o ódio incontido da mídia burguesa a
Lenin. Este foi o militante que soube harmonizar as reivindicações dos
trabalhadores com a luta pelo socialismo e teve papel decisivo na Revolução de
1917.
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Lenin discursando para operários e soldados |
A revolução vitoriosa combateu a
continuidade da Rússia na 1ª Guerra Mundial, denunciando-a como uma “guerra
imperialista”. Os bolcheviques no poder publicaram todos os tratados secretos
do Império Russo com os países da Entente, acelerando o final da Guerra. A
Revolução Russa ainda instituiu o voto feminino, a possibilidade de mulheres
poderem ocupar cargos de Estado, o direito ao divórcio, ao aborto, garantindo
igualdade jurídica e política às mulheres em relação aos homens. Muitos outros
países ocidentais tiverem que ceder nestes direitos também.
O ponto mais importante da Revolução,
contudo, foi a democratização da economia: a reforma agrária, a estatização de
bancos, fábricas, estradas de ferro, etc., que passariam a ser geridos pelos
sovietes. Mesmo que a Rússia tenha sofrido para desenvolver sua economia como
fruto da atroz guerra civil que se seguiu contra o poder bolchevique, a URSS
foi um país pioneiro na descoberta espacial, enviando a primeira sonda e o
primeiro cosmonauta ao espaço: Yuri Gagarin. Na questão científica – física,
química, biologia, pedagogia – a URSS contribuiu e aprofundou muitos aspectos,
além de ter se industrializado (fato impossível para os países da periferia do capitalismo)
e alfabetizado o povo. A maioria destes avanços da época de Lenin foi destruída
com a ascensão de Stalin ao poder. Não se trata de uma mera troca de nomes, mas
do início da contra-revolução e de uma mudança estrutural, que representaram
fatos históricos nada desprezíveis, mas que geralmente são ignorados ou
distorcidos pela grande mídia burguesa.
A Revolução Russa acertou e
errou, como tudo que vive e é estimulado pelo meio, terminando por se
degenerar: tiremos as lições para não cometer os mesmos erros!
Longe de nós querermos esconder ou
relativizar o horror do regime stalinista. Mas estes “horrores” e a degeneração
da Revolução Russa não foi um reflexo inevitável do “comunismo”, como quer nos
fazer crer a mídia burguesa. A sua degeneração foi um processo objetivo, que
expressou as condições históricas daquele momento: derrota da revolução
europeia (em especial da alemã) que selou o isolamento da URSS, a ascensão do
nazi-fascismo, a morte dos operários com consciência de classe durante a guerra
civil e o surgimento de uma nova camada de “administradores” sem nenhuma
consciência de classe, o atraso cultural, econômico e social da Rússia, que era
um país agrário, etc. Soma-se a isso o medo da autonomia por parte de muitos
indivíduos, fato que não foi trabalhado culturalmente. Tudo isso levou ao
surgimento da burocracia stalinista, que realizou seus expurgos, as
falsificações e os vergonhosos Processos de Moscou visando eliminar a velha
vanguarda que tinha feito a revolução junto com Lenin.
Não é verdade, como acreditam muitos
militantes, que “Stalin só poderia ter agido dessa forma para salvar a
revolução”. Não se trata de requentar velhas polêmicas nos 100 anos da
Revolução; se trata, antes de tudo, de entendermos o eixo por onde a burguesia bate
e desmoraliza o socialismo: o stalinismo traiu os princípios da Revolução
Russa, sabotou processos revolucionários pelo mundo, assassinou militantes
bolcheviques, destruiu as liberdades civis, falsificou, torturou e matou, enlameando
o nome do “socialismo” aos olhos dos trabalhadores do mundo. Carregamos esta
cruz ainda hoje! E é exatamente por aí que a burguesia ataca: associando
“comunismo” ao que é, na realidade, um regime stalinista. Todo este processo
está muito bem retratado na obra de Leon Trotsky “A Revolução Traída – o que é e para onde vai a URSS?”, escrita em
1937 e ainda hoje não superada. Todo aquele que quer ter uma verdadeira opinião
sobre socialismo precisa ler esta obra.
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Trotsky, Lenin e Kamenev discutem durante a guerra civil (1919-1921) |
Fazer este amálgama entre “comunismo” e
ditadura (ou dito corretamente, entre “comunismo” e regime stalinista), usando
o espantalho das perseguições, torturas e falta de liberdade civil, é o álibi
da burguesia e da sua mídia para esconder os horrores do capitalismo. Enquanto
não conseguirmos colocar a perspectiva do comunismo na ordem do dia –
aprendendo com os erros do passado –, continuaremos amargando o aumento da
barbárie, que cresce dia a dia, a olhos vistos, como resultado inevitável da
sobrevida do capitalismo.
A Revolução Russa expressou
uma prática e um programa que a “esquerda” ignora
A vitória da revolução em um país
atrasado e periférico gerou inúmeros problemas práticos e deixou lições
programáticas importantes. Lenin é enfático no seu livro “Esquerdismo”, onde
afirma que somente foi possível o triunfo da revolução porque houve uma vitória
ideológica sobre o oportunismo e o social-chauvinismo, expresso, sobretudo,
pelos mencheviques (adversários históricos dos bolcheviques no mesmo partido, o
POSDR). O menchevismo sustentou que na Rússia, por se tratar de um país
atrasado e periférico, só poderia haver uma “revolução democrática” (ou
burguesa); isto é, uma revolução em que as tarefas de desenvolvimento do
capitalismo e da burguesia (fim da monarquia, proclamação da República, reforma
agrária, etc.) seriam cumpridas em uma aliança política com a burguesia e os seus
partidos. A burguesia russa fez o oposto, se aliou ao czar contra os
trabalhadores e enriqueceu como nunca com a 1ª Guerra Mundial.
Os bolcheviques, por sua vez, a
partir da experiência da Revolução de Fevereiro de 1917, chegaram às mesmas
conclusões que Trotsky na sua teoria da Revolução Permanente, elaborada em 1905:
as tarefas retardatárias que a revolução burguesa não realizou, somente seriam
realizadas pelos trabalhadores no poder. Quem fez a reforma agrária e acabou
com a monarquia na Rússia foram os trabalhadores no poder. A partir da
experiência da Revolução Russa de 1917, qualquer tentativa de aliança
estratégica com a burguesia – tal como o PT e outros tentam nos fazer crer que
é necessária –, é uma traição. A Revolução Russa de Outubro de 1917 significou
a comprovação prática da teoria da Revolução Permanente defendida por Trotsky
em oposição à teoria da burocracia stalinista, que se tornou o dogma oficial de
todos os partidos comunistas do mundo.
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Tomada do Palácio de Inverno pelos operários e soldados russos |
O “comunismo” será duramente
atacado durante a Copa de 2018 na Rússia no mesmo espírito de associação com o
regime stalinista.
Poucas organizações de “esquerda” se
preocuparam em debater a Revolução Russa no seu centenário ou responder as
graves distorções feitas pela mídia burguesa. Uma boa iniciativa foi a coluna da
Esquerda Online, que procurou
responder todas as distorções do Fantástico. Ali estão muitos elementos
importantes para se conhecer a Revolução Russa sem as lentes da burguesia,
embora o título do seu artigo afirme equivocadamente que o repórter do
Fantástico tenha dito “bobagens sem sentido”. Nenhuma frase dita naquela
matéria foi “sem sentido”.
Mais do que 2017, que quase ignorou o
centenário da Revolução Russa, o tema voltará a ser abordado certamente com a
Copa do Mundo de Futebol, que será na Rússia em 2018. Provavelmente a grande mídia
se preparará para fazer uma nova campanha, reafirmando seus tantras:
“socialismo é ditadura”, “não dá certo”, “o regime matou e torturou”, etc. Por
medo e preconceito, muitos reproduzirão tais distorções. A isto, devemos
responder:
O “socialismo” ou “comunismo” não é
um produto que se pega na prateleira de um supermercado, testa sua “eficiência”
e se não sai como o esperado, se liga ao PROCON para reclamar, dizendo que “não
funcionou” conforme o manual de instruções. Não! O socialismo é um sistema
econômico alternativo ao capitalismo. Ele não cai do céu, pronto e acabado, mas
precisa ser construído a partir de uma revolução que supere a sociedade
capitalista. Isto é, trocando em miúdos, significa dizer que ele nascerá do
próprio capitalismo, com todas as suas contradições, ideologias, hábitos,
mentalidades, cultura, etc.
Para que tudo isso seja realmente superado é
necessário medir os acontecimentos não como um consumidor que liga ao PROCON
para saber porquê a sua mercadoria “não funciona”, mas como a evolução de um
processo histórico. É preciso olhar a “experiência socialista” pela ótica do
proletariado e não da burguesia. O capitalismo necessitou de anos para superar
o feudalismo. O povo francês passou fome logo após a Revolução Francesa de
1789; depois do cansaço da explosão popular, ajudou indiretamente a levar ao
poder Napoleão. Foi um processo social longo, contraditório e traumático, que
deixou inevitáveis cicatrizes, mas criou as bases do desenvolvimento social
futuro, ainda que não tenha resolvido (e nem poderiam) os problemas essenciais
da fome e da miséria, que seguem pendentes.
Os grandes capitalistas sabotaram as
experiências socialistas para “que não dessem certo” por diversos meios, tal
como a nobreza feudal sabotou as possibilidades do “capitalismo dar certo”, até
que foi definitivamente derrotada nas revoluções francesas de 1789, 1830 e
1848. A burocracia stalinista sabotou o “comunismo” por dentro, surgindo como
reflexo de uma conjunção de fatores; e o imperialismo o sabotou por fora,
através do boicote do mercado mundial, dentre outros meios. Uma das principais
diferenças com a revolução proletária é que a burguesia sempre esteve orbitando
as esferas dominantes da sociedade, juntos ao poder político; já o proletariado
é uma classe acostumada e ensinada a servir e a se submeter, sem nenhuma
experiência de comando e autonomia. Por isso, é preciso insuflar-lhe coragem
através da organização, da conscientização e da busca pela autonomia, e não
fazê-lo dócil e submisso, tal como o faz a burocracia sindical e as correntes
políticas oportunistas.
Bem longe do reducionismo preconceituoso e de
má fé da grande mídia burguesa, os trabalhadores conscientes precisam tomar o
que é seu (a história da Revolução Russa) para, de uma vez por todas,
compreender e superar os seus erros. O espantalho do medo do “comunismo”,
confundido com o que é, na realidade, o regime stalinista, é o grilhão com que
a burguesia e a sua mídia mantém os trabalhadores presos à escravidão
assalariada e ao inferno da sociedade capitalista.
A crise do capitalismo, expressa pelo ajuste
fiscal de diversos governos, demonstra que este sistema não representa futuro
para a humanidade. O “Estado (capitalista) de bem-estar social” na Europa e em
outros países surgiu durante o século 20 como uma resposta à existência da URSS,
para evitar que seus próprios trabalhadores se sublevassem. A restauração do
capitalismo na ex-URSS através da Perestroika (1989-1991) e a subsequente aplicação
da política econômica capitalista, conhecida como neoliberalismo, apenas
aumentou a miséria da maioria da população em detrimento do enriquecimento
descomunal de uma pequena minoria. Agora nem sequer um “Estado de bem-estar social” é necessário para conter os
trabalhadores. Este é o sistema injusto e desumano que precisamos superar se,
de fato, queremos falar em um futuro para a humanidade. A Revolução Russa, com
todos os seus erros e acertos, representou um grande passo nesse sentido.
- Viva a memória da Revolução
Russa! Viva a luta dos trabalhadores de todo o mundo!
- Que os núcleos do CPERS,
os demais sindicatos e movimentos sociais debatam o centenário da Revolução
Russa pela ótica dos trabalhadores.