Há
cerca de 2 meses Hong Kong está convulsionada. Milhares de pessoas, entre
estudantes e trabalhadores, saíram às ruas para protestar contra a lei de
extradição para a China, com centenas de feridos, bombas de gás lacrimogêneo,
quebradeiras de prédios, lojas, vidraças e vitrines. A segunda maior central
sindical de Hong Kong, a HKCTU, convocou uma “greve geral” de 1 dia. Os mais
entusiastas destas manifestações falam em “revolução” dos guarda-chuvas (símbolo
do movimento) e outros tantos reivindicam “todo
o apoio às mobilizações de Hong Kong”, afirmando se tratar de uma luta
pelas “liberdades democráticas, como o
direito à livre expressão e organização política”.
A “esquerda” brasileira, totalmente
burocratizada e encastelada nos sindicatos ou no parlamento, deu mostras de que
basta ter massas nas ruas para que se apoie qualquer espécie de protestos, não
demonstrando nenhum tipo de preocupação crítica. O espontaneísmo segue sendo a
sua principal característica, o que compromete a independência de classe. Foi
assim com as “revoluções coloridas” e a “primavera árabe”. Continua sendo com o
apoio desavergonhado e acrítico às manifestações de Hong Kong, que possuem as
mesmas características de supostamente serem “apartidárias” e “apolíticas” – a
principal artimanha do imperialismo, que tem sido usado exitosamente nesse
início de século 21 para jogar todos os protestos de massa contra a “esquerda”
e os próprios interesses históricos dos trabalhadores.
Não há como entender os protestos por
“democracia” e “liberdade de expressão” de Hong Kong sem entender a história
desta cidade peculiar.
Hong Kong: um paraíso fiscal
para os especuladores!
A conquista da China pelo Império
Britânico está repleta de crimes horrendos, como as Guerras do Ópio (ocorridas
entre 1839 e 1860), que viciaram a população chinesa nesta droga através do
tráfico para compensar a balança comercial desfavorável à Inglaterra. A vitória
inglesa nesta guerra impôs uma dura penalidade à China: a entrega dos seus
principais portos à ganância comercial da burguesia britânica, dentre os quais,
a ilha de Hong Kong, que ficaria sob domínio inglês por 155 anos.
Em 1997 a cidade foi devolvida
à China, já sob a liderança do Partido Comunista, uma vez que o prazo havia
expirado. Ainda em 1984, o líder “comunista” que trabalhou pela restauração do
capitalismo na China, escondendo isso sob o nome de “as quatro modernizações”,
Deng Xiao Ping, negociou pontos para a reincorporação de Hong Kong à China com
ninguém menos que a primeira ministra britânica, Margaret Tatcher, a dama de
ferro fundadora do neoliberalismo. Com o slogan de “uma cidade, dois sistemas” (isto é, na verdade, um eufemismo pra
esconder a submissão aos interesses do capitalismo internacional), Hong Kong se
tornou uma Região Administrativa Especial
(RAEs), que estabeleceu um novo prazo para passar totalmente ao controle da
China, previsto para 2047. Na prática, a cidade continua a utilizar a lei comum
inglesa, cujo sistema jurídico e administrativo foi implantado através da Lei Básica de Hong Kong, em 1990
(portanto, ainda sob domínio inglês) e que serve como uma miniconstituição da
região, conhecida como Declaração
Conjunta Sino-Britânica.
Os mais de 100 anos que a Inglaterra
teve o controle da ilha deixaram suas marcas profundas, que foram utilizadas
para cercar a China e assegurar a sua influência. Hong Kong tornou-se um
paraíso fiscal devido as suas leis que limitam ou eximem a tributação dos ricos
residentes e das corporações estrangeiras da ilha. É por isso que a maioria dos
principais bancos do mundo têm operações lá. A cidade também possui a segunda
maior bolsa de valores da Ásia, além de ter moeda própria, o dólar de Hong Kong, que opera com câmbio
vinculado ao dólar dos EUA e se submete às regras dos monopólios impostas ao
mercado internacional, algo que não acontece com a moeda chinesa, controlada
por Pequim. Hong Kong também tem uma Assembleia Legislativa com 70 integrantes,
composta por empresários, sindicalistas, professores, líderes religiosos e até
celebridades, eleitos por residentes com mais de 18 anos. Metade das vagas é
ocupada por representantes de regiões e a outra metade por representantes de
empresas.
Atingindo uma população de 7,5 milhões
de habitantes, a ilha não tributa os rendimentos auferidos além das suas
fronteiras. Os grandes capitalistas do mundo – sobretudo do ramo financeiro –
podem explorar o proletariado chinês nas zonas francas da China continental, especular
na bolsa de valores de Hong Kong e ainda guardar suas fortunas numa região
autônoma livre de impostos sobre ganhos de capital, juros e dividendos.
Por volta de 2015, os estrangeiros
tinham aproximadamente US$ 2,1 trilhões em ativos gerenciados na ilha e US$ 350
bilhões depositados nas fronteiras de Hong Kong. Uma vez que a Suíça cedeu à
pressão internacional para compartilhar informações sobre contas bancárias
estrangeiras e proprietários de ativos que procuravam fugir de impostos, Hong
Kong se tornou uma “alternativa” porque recusou-se a fazer o mesmo,
transformando-se em um paraíso fiscal
renomado.
O que quer a China com a lei
de extradição?
Em 2019 Pequim fez tramitar na
Assembleia Popular Nacional da China uma lei que tem o objetivo de extraditar
criminosos que estejam protegidos pelas leis autônomas de Hong Kong para a
China continental. Foi contra esta lei que se desencadearam as manifestações de
rua, classificadas pelo governo chinês de “violentas e inaceitáveis”; e
saudadas pela “esquerda” brasileira como positivas e “revolucionárias”. O
governo chinês acusa a existência de um núcleo organizado pelos EUA dentro
destas mobilizações, sobretudo a partir de uma de suas ONGs conhecida como National Endowment for Democracy (que
inclusive tem sede em Hong Kong), cuja principal função seria incitar a
sabotagem, a violência e a “desobediência civil”, escondendo-se atrás de um
discurso “em defesa da democracia e da liberdade”. Em alguns cartazes das
manifestações de rua se pode ler a reivindicação de intervenção de Trump.
A mídia comercial, seguida pela “mídia da
esquerda”, reforça a ideia de que se trata de reivindicações por “democracia” e
por “liberdades individuais”. Afirmam ainda que o projeto de lei sobre
extradição para a China continental coloca em risco a credibilidade e a “alma”
de Hong Kong, enquanto que o governo chinês quer “preencher um vazio jurídico”.
O jornal O Globo sustenta que “líderes empresariais, advogados, grupos de
imprensa e grupos de direitos humanos temem que Pequim use a lei para pedir a
extradição de fugitivos por razões políticas ou empresariais”[i].
De acordo com o governo chinês, o texto preenche uma lacuna jurídica e impedirá
que Hong Kong se converta em refúgio para “certos criminosos”. Caso aprovada, a
lei permitirá às autoridades de Hong Kong extraditar pessoas não apenas para a
China continental, mas para qualquer país do mundo com o qual ainda não tenham
acordo de extradição.
Está claro que Pequim, com a ajuda do governo
autônomo de Hong Kong, está trabalhando para preparar a anexação da cidade à
China, prevista para 2047. Daí a alegação de “preencher um vazio jurídico”; ao
mesmo tempo em que pretende impor restrições a atividades econômicas autônomas,
o que envolve um inevitável enfrentamento com os setores interessados em manter
Hong Kong como um paraíso fiscal sem leis para a especulação; dentre os quais,
estão, certamente, os imperialismos ocidentais representados pelos EUA e pela
Inglaterra. Aproveitando-se desse conflito, os EUA de Donald Trump e a sua
aliada Inglaterra intensificam a guerra comercial e híbrida contra a China de
Xi Jinping.
É precisamente isso que está por trás das
mobilizações de rua contra a lei de extradição, que são manipuladas por estes
interesses imperialistas. Não é casual que existam manifestantes que levantem a
bandeira dos EUA nos protestos e que a mídia comercial (sempre secundada pelos
seus papagaios da “esquerda”) afirme se tratar de uma manifestação por
“democracia” e por “liberdades individuais” contra o “autoritarismo comunista”.
Podemos confiar no governo
chinês? Ele é realmente comunista?
Apesar de a China ter a sua frente um Partido
Comunista, ela já não pode ser considerada socialista ou comunista. Lá opera
livremente a propriedade privada de monopólios e grandes empresas, que exploram
um proletariado contido e subjugado por um Partido “Comunista”. A tradição
teórica e prática deste partido está baseado no stalinismo, que tanto estrago
já causou ao movimento socialista. O “socialismo com características chinesas”
é um engodo para encobrir o fato de a propriedade privada operar lá livremente,
a submissão aos ditames do mercado e a exploração brutal do seu próprio
proletariado.
A China está preparando as bases para a
reanexação de Hong Kong ao seu território, o que gera, inevitavelmente, atritos
sociais e conflitos com interesses da especulação financeira de bancos e
grandes empresas. A sua preocupação não é o combate à odiosa especulação capitalista,
mas a reanexação de um território economicamente importante que é usado na
disputa imperialista para sabotá-la. Não há, portanto, nenhuma preocupação com os
interesses históricos do proletariado, tampouco com as condições de vida dos
trabalhadores de Hong Kong, ainda que tenhamos que reconhecer que é absurdo um
país não ter a soberania plena de seu próprio território.
Especular no mercado
financeiro é uma “liberdade de expressão”?
O que a mídia comercial, de “esquerda” e as
ONGs imperialistas alegam sobre “liberdade individual” é, portanto, apenas a
liberdade para especular em um paraíso fiscal. Não há uma única preocupação com
as condições de exploração sofrida pelo proletariado chinês ou de Hong Kong. Ao
contrário do que sustenta o PSOL, também não há nenhuma reivindicação
“democrática” ou de “organização política” autêntica que realmente interesse ao
proletariado, mas apenas de fortalecimento da democracia burguesa e dos seus
negócios.
A especulação financeira é uma atividade
de parasitas; e pra desgraça humana, uma das mais rentáveis do mundo.
Especulação significa lucro fácil; o
oposto do que supostamente prega a ideologia da meritocracia e do empreendedorismo
capitalista. Não há produção real ou incremento da economia. Ela contribui para
o surgimento de capitais fictícios que engendram as crises econômicas futuras,
além de enriquecer meia dúzia de banqueiros e acionistas em detrimento da
população global. A especulação com a compra de safras agrícolas
antecipadamente, por exemplo, intensifica a fome na África e em outras regiões
que dependem da agricultura. É para isso que trabalha a burguesia ligada a
Trump: desregulamentar todo o mercado financeiro e combater qualquer tipo de
legislação contra a especulação.
Isto seria “liberdade de expressão” ou de
exploração?
A direita tem mobilizado as
massas muito mais exitosamente que a “esquerda”!
Neste início de século 21 vimos a
explosão de diversas manifestações espontâneas: primavera árabe, Occupy Wall Street, Coletes Amarelos,
manifestações de 2013 no Brasil, dentre outras. Dada a inoperância e o
oportunismo da “esquerda”, a direita e o imperialismo canalizaram estas
manifestações para si. Mais do que isso: a partir de ONGs e organizações
reacionárias (como o MBL), a direita passou a mobilizar massas através do ódio,
do sadismo e do caos social gerado pela crise do capitalismo. A “esquerda”
vergonhosamente tem apoiado todos estes “movimentos” sem nenhuma preocupação
com suas palavras de ordem, sua real organização e inserção no movimento de
massas, bem como sua agitação e propaganda.
Em 1909, Lenin já zombava desse
espontaneísmo: “A ‘filosofia’ dos heróis
da espontaneidade reduz-se, em traços gerais, a esperar que a história trabalhe
por nós e que o mundo capitalista caminhe para o declínio; uma vez que o surto
revolucionário tende para a situação revolucionária, a atmosfera revolucionária
impelirá mecanicamente as massas para a influência do partido [revolucionário]”. Apoiar qualquer mobilização de massa,
sem a menor preocupação com o conteúdo e o programa das manifestações, não pode
gerar nenhuma situação revolucionária, tampouco o crescimento do partido
revolucionário, mas apenas a consolidação do domínio da burguesia. É
precisamente isso que nos ensina este início de século.
Os EUA, através da sua sempre aliada e cada
vez mais submissa, Inglaterra, tem usado as massas de Hong Kong como parte da
sua guerra comercial e híbrida contra a China. Quem não entendeu isso não entendeu nada do que se passa em Hong Kong!
O grande problema continua sendo a crise de direção do proletariado, que não
apresenta política independente nessa disputa.
Ao contrário desta compreensão, o PSOL
conclama “todo o apoio às mobilizações de
Hong Kong”[ii],
o que poderia ser traduzido por: “todo apoio ao imperialismo norte-americano e
aos seus especuladores”; e o PSTU preocupantemente afirma que “a classe operária entra em cena”[iii].
Para sustentar este disparate oportunista, se sustenta na nota da HKCTU, cujo
programa das famosas “greve gerais” de 1 dia, contém o seguinte: “a) Retirada permanente do projeto de ‘lei
de extradição’; b)Retirada da caracterização de ‘motim’ dos protestos de 12 de
junho passado; c) Liberação sem acusações dos manifestantes detidos; d)
Investigação independente da violência policial e o abuso de poder, e
e)Implementação plena do sufrágio universal (para a eleição do Chefe de Governo
e do Conselho Legislativo)”[iv].
Como se pode ver, não há entre as
principais reivindicações nenhuma que seja proletária. A maioria delas diz
respeito aos interesses do imperialismo; e as outras defendem a não
criminalização daqueles que lutaram em defesa dos especuladores. Isso não
impediu o Esquerda Diário e o MRT de
dizerem que “a greve geral em Hong Kong
põe em xeque o governo de Carrie Lam e de Pequim”[v]. O espontaneísmo da
“esquerda” tem servido para sustentar a mobilização de massas da direita e do
imperialismo contra os trabalhadores e o socialismo. Iludem suas bases de que
estão trabalhando pela revolução socialista, quando na verdade são o abre alas
dos interesses do imperialismo dentro do movimento sindical e político do
proletariado.
A LIT e o PSTU vão mais longe quando
reafirmam a sua teoria oportunista de “Revolução Democrática”, aconselhando que
“os trabalhadores e as massas da China
continental” devem avançar “para a
derrubada do regime chinês (com a palavra de ordem de ‘Abaixo a ditadura’)”[vi],
notadamente para instaurar na China a democracia burguesa, uma vez que é apenas
o imperialismo norte-americano que pode instaurar, no momento, qualquer regime
político neste país. Dão, assim, um passo adiante no seu servilismo ao
imperialismo. E quando afirma que “a luta
em Hong Kong pode chegar a um ‘limite intolerável’ para o regime chinês se a
governadora Carrie Lam for derrubada pela luta e Beijing perder o controle do
território”[vii],
deixa claro que trabalha – consciente ou inconscientemente – a favor do
imperialismo estadunidense e britânico.
No caso de Hong Kong, assim como em
muitos outros – incluso no Brasil –, “a esquerda” dá mostras que não superou o
espontaneísmo das massas e que funciona apenas como a quinta coluna do
imperialismo. Novamente sacrifica uma política de independência de classe,
tanto na propaganda quanto na agitação, em nome de supostamente “apoiar as massas” em
suas “justas” reivindicações. Se não superarmos esta teoria e esta prática
oportunista, a revolução socialista estará irremediavelmente condenada; e com
ela, as condições de vida do proletariado.
NOTAS
[i] https://oglobo.globo.com/mundo/entenda-por-que-uma-nova-lei-de-extradicao-vem-causando-protestos-em-hong-kong-23731229
[ii] http://psol50.org.br/todo-apoio-as-mobilizacoes-de-hong-kong/
[iii] https://www.pstu.org.br/hong-kong-a-classe-operaria-entra-em-cena/
[iv] http://en.hkctu.org.hk/content/strive-five-major-demands-calling-workers-strike-5-august
[v] https://www.esquerdadiario.com.br/A-greve-geral-em-Hong-Kong-poe-em-xeque-o-governo-de-Carrie-Lam-e-de-Pequim
[vi] https://www.pstu.org.br/hong-kong-a-classe-operaria-entra-em-cena/
[vii]
Idem
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